Em algum lugar perto de alguma colina invadida pela tempestade noturna, um helicóptero havia caído e dele só restara os pedaços. Por sorte, um grupo de mafiosos sobreviveu ao acidente. Ou quase sorte. Não lhes restava muita coisa agora, senão uma bagagem com poucos suprimentos. Chovia torrencialmente, a ponto do frio invadir a pele e dar aquela sensação de que os ossos iriam quebrar a qualquer momento.
Estavam abatidos, feridos, ensopados e trêmulos.
Naquela noite, eles caminhavam pro cenário mais consolador e ao mesmo tempo mais suspeito daquele contexto. A casa ainda parecia aguentar mais uns dez anos, apesar da pintura gasta e outros detalhes que nenhum deles tinha tempo para reparar. Ninguém respondeu à campainha, então tiveram que arrombar a porta. Entraram às pressas, abraçando-se ao próprio corpo para conter o frio.
Quando a porta se fechou, os cinco se olharam. Cada um com uma expressão mais enigmática que a outra.
- Ai, meu Deus... – Nom ia completar a frase, mas foi interrompido pelo próprio espirro.
- Saúde. – Desejou Lilith num sorriso.
Miata passou a mão pelos cabelos que colavam em sua testa e os afastou:
- Nosso helicóptero...
- Isso não pode estar acontecendo... – Lancer murmurava transtornado.
X não manifestou nenhuma reação aparente nos primeiros instantes. Num gesto brusco demais virou as costas, tirou o capuz e se ajoelhou perto da única sacola que se salvara do acidente. A ração já era, os cartuchos estavam estragados e nem mesmo os aparelhos de escuta se salvaram. Prestes a perder as esperanças, tirou do fundo da bagagem o notebook de Júlian.
- Espero que não tenha danificado o GPS. – Em seguida tirou duas lanternas e as ligou. Por sorte estavam funcionando – Ufa...
- Vamos
mesmo ficar nessa casa com cara de mal assombrada? – Miata era uma mistura de pânico com indignação – Sério
mesmo?
Em outros momentos, Lancer teria jogado uma resposta cheia de humor negro para o namorado, mas a ocasião pedia seriedade. Fora que seu próprio humor era dos piores.
- É isso ou a chuva. – Nom replicou. Sua voz forçava uma segurança que lhe escapava. - Eu estou congelando...
X não conseguia ter mais coragem que ninguém naquele recinto, entretanto estava acentuadamente desconfortável ali, fora o frio dos infernos. Esperava achar ao menos alguma coisa pra se aquecer. Torceu pra que a arma ainda estivesse funcionando e pegou uma das lanternas, jogando a outra para Lancer.
- Eu vou dar uma olhada na casa.
Em seguida sumiu no corredor.
- Ele ficou maluco? Não pode ir sozinho! – Nom franziu o cenho indignado – Vamos atrás dele?
Lancer, Miata e Lilith ficaram calados. Nom não conseguiu identificar a expressão de nenhum deles. Arqueou as sobrancelhas tentando absorver alguma coisa de Lilith e seu semblante enigmático, que parecia totalmente alheio à sua presença.
- E se nós... – Ela murmurou num tom de névoa – Contássemos histórias de fantasmas?
Foi como a garota tivesse proposto uma partida de roleta russa. Ao menos foi assim que Miata reagiu à proposta:
- Quê!? Ficou maluca? História de terror?! As lâmpadas dessa casa nem estão funcionando!
Lancer fechou a cara e se colocou à frente do namorado:
- Olhe, se isso é uma brincadeira pra assustar ele...
- Não, ela pode ter razão! – Nom interviu, mesmo sem saber se essa era a melhor escolha - Olhem essa casa! Conseguem sentir o miasma daqui? Estamos
presos nessa tempestade e ficaremos assim a menos que purifiquemos o ar.
- E a solução pra purificar alguma coisa é contando histórias macabras!? – Miata estava em pânico - Vamos atrair mais!
- Talvez... Talvez não... – Lilith mordeu o lábio inferior e respirou fundo. – Podemos tentar. Vamos esperar X voltar e ai eu começo, certo?
Lancer contraiu o punho e cerrou os dentes:
- Miata odeia essas histórias. Ele não precisa escutar.
- Todos precisam escutar. – A moça insistia – Por favor, confiem em mim. Vamos esperar X e começar. Vai ser rápido. A casa não é grande. Não tem muito lugar pra investigar.
O piloto de corrida não insistiu nem desistiu. Apenas torceu para que a busca de X demorasse tempo suficiente para Lilith desistir da ideia. Olhou para o notebook de Júlian e torceu para que aquilo ainda ligasse. Tentou. O disco rígido estava totalmente comprometido, mas o GPS instalado parecia ter se salvado.
Furioso, Lancer deu um soco no chão de madeira. No fundo se culpava por tudo o que tinha acontecido. Não devia ter se oferecido para pilotar aquele helicóptero, muito menos concordado em viajar com a previsão de um temporal. Está certo que nunca imaginara que a tempestade fosse tão violenta, mas mesmo assim a raiva e a frustração que lhe consumiam eram imensuráveis.
A luz surgiu do corredor, e junto com ela veio X, com o corpo agasalhado por uma toalha branca e felpuda, que lhe cobria a cabeça, os ombros e os braços. A capa verde estava enrolada de baixo do mesmo braço que trazia a lanterna. No outro, havia mais quatro toalhas.
- Boas notícias. É a casa de praia de alguém. Também tem lençóis nos quartos.
Miata olhou para todos aqueles generosos pedaços de pano quentinhos e felpudos sem sentir vontade de tocar em nenhum deles. A ideia daquele lugar ser a casa de praia de alguma família não lhe convencia. Aquilo estava mais parecido com um lar de algum defunto. Típico das histórias sobre casas mal assombradas.
Aquela ideia lhe causava arrepios.
- Então? Vamos começar? – A moça voltou a lançar um sorriso amigo.
Um sorriso que de alguma forma não agradava Lancer.
- Começar o que? – Perguntou X.
- Histórias de fantasmas. Achei que seria uma boa ideia contarmos pra suavizar o clima.
X não respondeu de imediato. Ficou em silêncio, deixando os olhos se esconderem pelas lentes que refletiam a luz da lanterna do ruivo. Com um leve ar de hesitação que
quase - quase - passou despercebido por Lilith, assentiu:
- Tá. Quem começa?
Os olhos de Miata se arregalaram.
- Tá brincando, né? – Lancer estava incrédulo.
- Não temos muito o que fazer. Os outros vão demorar a nos encontrar, não tem comida, nem energia, e só vamos poder pescar alguma coisa ou tentar encontrar um resquício de civilização amanhã, depois da tempestade. Além disso... – virou o rosto ao fazer uma pausa – Vai ser bom deixar o clima menos pesado.
- Então são três contra dois. – Nom anunciou – Vamos começar.
Foi com muito custo que todos se sentaram numa roda imaginária, deixando apenas uma das lanternas iluminarem o local. Lilith mantinha um sorriso que parecia estar prestes a desmanchar, Nom contraía os lábios, X mantinha os olhos fixos em algum ponto imaginário, Lancer engolia sua revolta e Miata se via diante de seu pior pesadelo.
- Eu começo... - Pronunciou a moça com uma voz fraca demais - Aconteceu há bastante tempo...
Continua