Já fazia certo tempo que Jonathan andava estranho. Não que ele já não fosse, mas sua personalidade estava chegando a um patamar infantil e irritante. Ninguém conseguia sequer imaginar o que se passava na cabeça dele para às vezes agir de maneira tão gentil, e em outras com uma agressividade assustadora. E o pior, parecia ser algo consciente, visto que ele agora passava mais tempo no quarto isolado que qualquer outra coisa. Até Lilith estava encontrado dificuldade de interação com ele.
Muito tentavam compreender, e outros simplesmente ignoraram e repreendiam essa ação idiota. Mas não Houdini.
Ele não se satisfazia com esse jeito impulsivo do garoto. Já havia passado por situações parecidas com seus irmãos, e se ninguém iria confrontá-lo para resolver esse problema, compreender o que estava se passando então, ele iria. Para – se possível – acalentar ou “dar uma lição naquele moleque”. Houdini então apagou seu cigarro, e foi até o quarto de Jonathan.
Após subir as escadas, se deparou com aquela porta marrom escura, a qual nem imaginava o que havia por trás. Deu três batidas na porta, esperando que o dono do quarto estivesse em um humor receptivo.
Não demorou muito para a porta se abrir, e se havia algo evidente no olhar de Jonathan, era o cansaço marcado pelas olheiras profundas que conseguiam escurecer até mesmo seus olhos de um azul tão claro que chegava a ser irreal. Não foi preciso pensar muito para que Houdini deduzisse que não aconteceria dele ter que aumentar a voz para se impor – algo típico numa discussão ofensiva – mas ainda sim teria que persuadir o mais jovem a falar. Jonathan se afastou sem dizer uma palavra, deixando-o entrar.
O mais jovem sentou-se em sua cama, evidentemente cabisbaixo. “É, vou ter que puxar todo o assunto. Que saco” pensou Houdini, sentando-se por vez na cadeira com rodas preta, de modo a ficar frente a frente com ele na conversa. Um silêncio tomou conta do local, estava na cara que seu pensamento era uma realidade. Soltou um suspiro, e deu a primeira fala.
– Então, vai ficar mofando em seu quarto, se deixando a mercê do que todos irão falar? Isso está realmente chato cara. Se quer chamar atenção, tem jeitos mais dignos para isso. – O outro demorou um pouco para reagir, mas enfim lentamente abriu os lábios, com os olhos focados em qualquer lugar, menos no Houdini.
– ... Não é bem assim... que funciona...
– Funcionar? Cara, pagar de
attwhore não vai te tornar querido. Encare isso. – Ele podia ouvir claramente Jonathan engolindo em seco. Ele escondia alguma coisa, e teria que revelar agora. Não foi lá para voltar de mãos abanando. Pensou que teria que falar mais alguma coisa, mas logo o menor se aproximou dele para abrir uma gaveta e pegar um papel. Entregou-o para Houdini, que começou a ler.
Era de conteúdo curto. Meramente um atestado. Não médico, mas de um psiquiatra. Dizia que o paciente tinha sintomas de “Transtorno de personalidade limítrofe” (Borderline). Seria preciso mais algumas idas ao consultório para confirmação de patologia ou reverificação das incidências dos sintomas. De qualquer modo, as ações sociais do paciente estavam visivelmente debilitadas, sendo o papel por fim de cautela na hora de realizar certas atividades – Coisa que poderia ser facilmente trocada por “missões”.
Houdini tentou entender aquilo. Era difícil pensar que todas as ações dele eram resultado de um Borderline. Uma personalidade limítrofe, que conseguia apenas distinguir cada coisa de cada vez, mas de modo intenso. Possuía similaridades com o Transtorno Bipolar, entretanto, enquanto o Bipolar o foco é apenas as alterações constantes e extremas de humor, a limítrofe há o bônus de não sentir-se seguro de si e sua própria identidade, e quaisquer coisa que entre no meio disso pode ou não ser bem recebido. Se não há a própria segurança consigo, como fazer o mesmo com as outras pessoas, mesmo que elas recebam a pré-avaliação de “Não receptivos”? Isso levava a uma situação em que pacientes só encontravam fuga na dor, ou no prazer – Em resumo. Tentava encaixar com as situações que presenciara, mas o jovem cortou seu raciocínio.
– Não quero mostrar isso para o chefe, de forma alguma. Não quero mostrar uma limitação que venha a atrapalhar o andamento das missões. Prefiro mil vezes ser tratado como um idiota infantil, mas saudável, do que alguém que as pessoas devem tomar cuidado com as palavras, pois isso acarreta em reações bem mais profundas do que pensam. É chato. Jamais pedi um mundo dividido. E será um segredo que enterrarei comigo.
– Então porque deixa a receita assim, tão fácil de ser achada?
– Estou tentado juntar coragem para falar com a Lilith. E preciso dele para pegar o remédio. Tarja preta, obviamente.
Queria pensar onde se meteu. Antes não tivesse entrado naquela porta, seria só mais um curioso. Mas tinha que ter a mania de tirar todas as dúvidas, mesmo que seja na força. Agora, sabia de um segredo que preferia esquecer. Não porque é terrível, mas cara... Essas coisas algum dia vem à tona.
– Se está na máfia, deveria ser mais transparente com os outros.
– Que tal começarmos dando seu verdadeiro nome, Houdini? – Questionou facilmente, com os olhos antes caídos, agora sérios, só querendo um motivo para explodir. Houdini não podia rebater com seu verdadeiro nome, então continuou, com o olhar mais calmo – Todos queremos esconder nossas cicatrizes. Quanto melhor esse trabalho for, mais maduro seremos. Me deixe esconder só mais esta. Vocês sabem de muita coisa sobre mim, se no entanto ainda for insuficiente, eu falarei dentro do que eu posso relevar, não é nenhum incômodo.
– Prove que você poderá fazer isso quando necessário. Me conte algo, agora. – Jonathan tremeu com uma ação tão repentina. Mas... foi a proposta, não foi? Tinha perdido. Porém, não achava aquele local o melhor para tais discussões. Impregnado de miasma negativo. Mas o área de treino com pistola podia levantar seu astral e se sentir mais seguro para falar (Ou ao menos enrolar).
– Eu irei... Mas... Venha comigo. – Se levantou, e foi segurado pelo outro:
– Você não vai escapar de falar. – O Menor riu, terminando com um sorriso terno. Um sorriso que de alguma forma tranquilizou Houdini.
– Não, vamos só mudar de ares.
...
Houdini achava estranho aquilo. Até o momento, estavam só treinando com suas armas, nada de mais, mas ver que o humor de Jonathan havia melhorado – E muito – já era um fator que o deixava menos preocupado. Podia sentir como o outro lidava com os acertos e erros no treino como uma mera brincadeira de criança, que sempre finalizava com saldo positivo. Ainda sim ele se disponha em dar dicas e avisar de erros, inicialmente com a rigidez de um general, mas cada vez mais como um veterano de campo. E era justamente esse clima que Jonathan esperava. Sorriu, e antes de começar outra sessão com os bonecos de madeira, tomou a coragem para contar um pequeno fato.
– É meio óbvio, mas... você já deve saber que tenho Aicmofobia.
– Hum? Fala do medo de agulhas? Sim.
– Então, geralmente, fobias estão ligadas a acontecimentos marcantes, por isso não é mero “medo de algo”. É inclusive acompanhando de fatores biológicos, como taquicardia e dores de cabeça ou algo do tipo.
– Então o que houve para você ter essa fobia, Nom? – Um silêncio se formou. Não é algo simples falar do que te assombra, mas havia perdido a discussão, não é? Então deveria continuar.
– Não sei se você ouviu por aí, mas perdi meus pais em um acidente de carro. Um acidente que aliás, deixou meu irmão bem debilitado e em mim, deixou uma extensa cicatriz nas costas. Mas voltando ao assunto: Tudo tinha acontecido tão rápido... Em um minuto, eu estava brincando com meus irmãos, em outro estava sendo arrastado para dentro da mata por meu irmão, para nos protegermos da chuva. É desconfortável imaginar tudo isso, especialmente porque a primeira coisa que vi quando recobrei a consciência, foram meus pais mortos... com direito a minha mãe tendo um pedaço de latão do que restou do carro a perfurando... Bem no centro. Toda vez que vejo qualquer objeto pontiagudo, essa memória ressurge e eu estremeço.
– Não... imaginava.
– Ah, tudo bem. Você não tem o costume de falar comigo mesmo. Não tem como saber os detalhes de tudo, nem poderia falar de algo assim numa conversa normal. – O jovem riu, mas suas mãos estavam trêmulas. Houdini notara isso.
O que ele escondia, afinal de contas? Aquilo o enchia de raiva, mas o fascinava. De fato, nunca havia tido contato a tanto tempo com o garoto, então jamais poderia sequer defini-lo em algum dos estereótipos que a mansão o colocara. Não era uma pessoa de fazer isso. Mas havia sim, muitos conceitos errados de percepção. Não sabia se era por causa da personalidade Borderline, ou se foi falta de alguém para estar ao lado dele para quando quisesse ter uma conversa de “Homem para homem”.
O jovem o olhava de maneira curiosa. Estava pensando demais. Então, resolveu seguir com seu jeito sincero, e deu-lhe uns tapas nas costas deixando-lhe um último conselho com um fraco sorriso.
– Nom, é o seguinte: Não mudarei minhas palavras de antes, a vida não é apenas drama. Eu sei que você tá se esforçando para mudar sua própria visão de mundo, mas não pense que é um processo martirizante, você pode e deve contar com a ajuda de todos na mansão. Inclusive de Lilith. Ela irá entender perfeitamente. Assim como cada um de nós iremos entender com o tempo. Você nunca esteve sozinho. Mesmo que pareça, na verdade, ninguém irá te julgar negativamente se agir como realmente és. Não tenha medo, mas se mesmo assim as coisas forem complicadas, poderá me procurar... Jonathan. – O menor só pode agir impulsivamente o abraçando ao constatar que aquelas eram palavras sinceras. Seus olhos estavam marejados, não por tristeza, mas por uma felicidade inocente, virtuosa. Mesmo que isso fosse desconfortável para Houdini, entendia que foi o modo dele demonstrar sua confiança.
– Sim, mas... Posso insistir em uma coisa? – Então o soltou, deixando-lhe discretamente aliviado.
– Ok, o que seria?
– Er... Vamos fazer dessa situação nosso segredo, tudo bem...? Consigo pressentir os shippers em exagero com essa situação. – Riu nervosamente. – Vai ficar meio chato pro seu lado, acredite.
– Hum? Ah, certo... Então que tal só mais um disputa? – Jonathan assentiu, continuando o treinamento.